Quem me conhece sabe bem da minha paixão pelos Açores, mas embora fale várias vezes do arquipélago no meu livro este episódio não consta lá.
Em 1978 fui pela primeira vez a São Miguel. Em 79 fui também à Terceira e quando pensava voltar lá, com uns amigos espanhóis, em 1980 deu-se o terramoto.
No entanto, a partir daí regressei várias vezes ao arquipélago, não uma vez por ano como tinha dito que iria fazer, mas com bastante frequência.
Aliava a parte profissional, com que justificava a deslocação, ao aprofundamento do meu conhecimento daquelas ilhas, que me fascinavam.
Ponta Delgada e Angra do Heroísmo eram sempre visitas obrigatórias. Em Angra ficava a Secretaria Regional da Educação e em Ponta Delgada a da Juventude. Uma visita a ambas fazia parte do meu programa oficial.
A história que vou relatar passou-se nos anos 80, mas não sou capaz de precisar em qual, em Angra do Heroísmo. Comecei o dia com uma visita à Jerónimo Emiliano de Andrade, onde fiz as minhas sessões habituais em várias turmas. Almocei numa daquelas ruas paralelas que vão dar ao Cais, nunca sei os nomes. Depois um café numa pastelaria que fica na Rua da Sé e que tem uns bolos ótimos e segui para a Rua da Carreira dos Cavalos, um nome inesquecível!
Depois dos cumprimentos habituais na Secretaria Regional, onde fui sempre muito bem recebido regressei ao hotel onde um jornalista do Açoreano Oriental me ia entrevistar.
Para quem não sabe, e aposto que poucos sabem, é o mais antigo jornal em circulação em Portugal. Não sabiam, pois não?
Terminada a parte profissional da visita decidi passar o resto da tarde calmamente no Jardim do Duque da Terceira na companhia de um livro. Sempre que ia aos Açores tirava sempre mais dois ou três dias por minha conta para descansar, dar uns passeios ou, como eu dizia, carregar as baterias.
No dia seguinte tinha programado dar uma volta à ilha num carro alugado, fazia sempre isso procurando, de cada vez, ir descobrindo novos lugares. Um banho nos Biscoitos, quando estava bom tempo, fazia sempre parte do programa.
Voltando ao jardim, depois de dar a volta habitual e ter prestado homenagem ao Almeida Garrett fui andando ao longo de uma subida acentuada que o jardim tem, com vários patamares, até descobrir o local ideal para gozar da paisagem, ler, meditar ou mesmo não fazer coisa nenhuma, que também pode ser bastante agradável.
Sei que me deixei ficar por ali e devo ter perdido a noção do tempo, ou dormitado, porque de repente dei-me conta de que já estava a ficar escuro.
Decidi descer e quando olhei para baixo, para a parte junto à entrada onde fica o coreto, já não vi ninguém. Devem estar a sair agora, pensei. Só que quando cheguei junto ao portão vi que estava fechado mesmo e não apenas encostado como eu tinha pensado.
Bati com força no portão, para ver se me ouviam do lado de fora, mesmo ao lado do portão havia um café, mas nada. Andei por ali às voltas mas não via nada que me permitisse chamar a atenção de alguém.
Lembrei-me que de manhã, quando tomava o pequeno-almoço no hotel, pelas janelas via o jardim. Pode ser que ande por lá algum empregado agora, pensei. Mas nada, tudo escuro. Não sei se fechavam os estores à noite, porque nunca lá jantava.
De repente tive uma ideia. Conhecia bem todos os recantos do jardim e lembrei-me que do lado da Ladeira de São Francisco havia um portão e que já o tinha visto aberto antes. Mas claro, desta vez estava fechado.
No entanto era a minha única alternativa. Havia uns degraus de pedra, um muro não demasiado alto e o portão. E se eu saltasse por ali?
Já estava a ficar escura e eu conhecia bem a rua, tinha muito pouco movimento. O museu já estava fechado há muito, desse lado não viria ninguém, pelo que decidi tentar. Olhei para baixo e lembrei-me dos meus treinos nos paraquedistas. Aquilo era peanuts comparando com o que tivera que fazer em Tancos. Só que em Tancos tinha vinte e poucos e ali estava com quarenta e muitos e completamente destreinado.
Bom, António, vamos a isto! E saltei. Ao cair rolei para amortecer o choque e saí-me menos mal, embora um pouco magoado. Não morri, já não foi mau.
Limpei-me e arranjei-me um pouco e entrei no hotel, logo uns metros mais abaixo, com o ar perfeitamente digno de um hóspede normal.
Só quando cheguei ao quarto é que me dei conta do que tinha feito. E se alguém me tinha visto? E, pior que isso, se era alguém que me conhecesse? Alguém da Secretaria Regional, onde era recebido com tanta cerimónia, que descobrisse que o indivíduo a quem proporcionavam acesso a todas as escolas secundárias da Região Autónoma andava a saltar muros dos jardins! Nem queria imaginar.
Mas não aconteceu e assim fiquei com mais uma história para contar.
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