Nunca tive muito boa memória, e hoje em dia é péssima. Como é que eu consegui então recordar tantos episódios, com tantos pormenores, como os que são revelados no livro? Como é que consigo dotar praticamente todas as histórias, algumas passadas há décadas, de datas precisas?
Vou agora revelar alguns segredos sobre mim que praticamente toda a gente ignora.
A minha mãe, professora primária, ensinou-me a ler e a escrever muito novo, demasiado na opinião de algumas pessoas. Adquiri logo o vício da leitura que, felizmente, nunca perdi.
Mais tarde, já no liceu, como não confiava muito na minha memória organizava resumos sobre a matéria estudada, uma técnica que é usada por muitos, se não quase todos, os estudantes. No entanto foi nessa altura que comecei a tomar nota de tudo. Ideias, projetos, coisas que eu queria fazer, livros que me interessavam, filmes que queria ver, tudo era anotado em pequenos blocos e guardado.
Deram-me dois diários. Num, ainda muito novo, escrevi as baboseiras próprias da idade, mas cansei-me depressa. O outro foi escrito durante o ano em que estive a estudar nos Estados Unidos, ou seja, com 16 anos. Nesse escrevi tudo com grande pormenor. Encontrei-o quando procurava documentar-me para o livro que pretendia escrever. Foi uma sorte. Já nem me lembrava que o tinha.
Este diário tem uma caraterística muito interessante, reveladora do que pode acontecer quando nos adaptamos a uma nova cultura. Até ao dia 31 de Dezembro de 1956 está escrito em Português e a partir do dia 1 de Janeiro de 1957 está escrito em Inglês.
Mas esse diário apenas me ajudava com o relato do que se passara nesse ano. E o resto?
Nos anos sessenta comecei a adquirir todos os anos um pequeno memorando de secretária, como os que estão na foto, onde anotava todas as noites tudo o que acontecera nesse dia. Não era um diário, era apenas um registo de factos, mas por vezes com pequenos e sucintos comentários. Se num dia só tinha estado no escritório, teria nessa página “MW”. Tinha estado na MultiWay e pronto. Se tinha encontrado alguém interessante registava o facto estilo “almoço com…..”. Se tinha participado num evento mais importante podia acrescentar algumas linhas, mas sempre apenas o estritamente necessário.
Esses memorandos, que ainda hoje utilizo, ocuparam ao longo dos anos vários gavetões de uma escrivaninha e foram fundamentais. Sem eles o livro, tal como está, nunca teria podido ser escrito.
Primeira fase, a mais longa e trabalhosa. Folha a folha percorri-os todos, anotando tudo o que tinha algum interesse ou relevância em mapas anuais. Nos memorandos em que eu, normalmente em situação de viagem, anotava mais comentários, rasgava essas páginas e guardava-as tendo antes cuidadosamente anotado o ano. O resto era rasgado e deitado fora. Ficava assim com um registo que já ocupava, em média, pouco mais que uma folha A4, de cada ano.
Segunda fase. Retirar de cada registo o episódio ou assunto que me interessaria abordar, anotando-o numa lista que continha o seu título provisório e a data em que ocorrera.
Terceira fase. Dessa listagem decidir quais os que, pelo seu tema ou conteúdo, deviam figurar num livro com as caraterísticas do que eu pretendia escrever.
E foi a partir desta lista final, que ainda sofreu ligeiras alterações, que comecei a escrever.
Alguns episódios foram retirados, quase sem alterações, de um blog onde eu escrevia ocasionalmente, sobretudo relatos de algumas viagens, mas só a partir de 2012.
Noutros aproveitei as tais folhinhas mais detalhadas que tinha retirado dos memorandos e ainda algumas fotografias com a data atrás para, aí sim, com recurso à memória, completar o relato.
O curioso é constatar como o simples facto de estar a escrever me trouxe à memória tantos episódios em que eu nunca mais tinha pensado. Também não deixa de ser curioso que sejam os episódios passados na minha adolescência e juventude aqueles de que me lembro melhor, com mais pormenores. Creio, no entanto, que isso acontece com muitas pessoas.
Esqueci-me de referir a odisseia que foi retirar de gavetas nos mais variados móveis inúmeros álbuns de fotografias que também procurei organizar e que me ajudaram a recordar certos episódios e também a datá-los.
Pretendia que o livro fosse mesmo meu, ou seja, escrito por mim, à minha maneira. Por esse motivo apenas recorri ao apoio de uma revisora que evitou alguns erros ou gralhas gramaticais, mas que sabia que mesmo que discordasse determinadas frases tinham que estar escritas daquela maneira. Ela, coitada, nunca tinha feito um trabalho com tantos condicionalismos, mas compreendeu a ideia e entendemo-nos bem.
E a ideia era muito simples;
Não sou e não pretendo ser um escritor. Sou um contador de histórias que passou por muitas situações que relatei aos jovens com quem trabalhava e que eles gostavam de ouvir.
Escrevi como se estivesse a falar para eles.
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