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Foto do escritorantvaladas

Praia da Tocha


Este episódio passou-se nos anos 80, mas não consigo precisar exatamente quando. Antigamente eu percorria o país a efetuar sessões de esclarecimento sobre os cursos no estrangeiro em todas as escolas secundárias. Posso mesmo dizer que devia haver pouca gente em Portugal que conhecesse tantas escolas como eu. Em cada cidade onde ia já sabia de cor onde é que as escolas estavam situadas.


Procurava sempre que possível fazer coincidir essas idas às escolas com os últimos dias da semana. Dessa forma aproveitava sempre o fim-de-semana para ficar a conhecer melhor toda a região mais próxima das últimas escolas que tinha visitado.


E foi assim que de certa vez decidi fazer o meu roteiro-descoberta ao longo da costa, entre Aveiro e a Figueira da Foz. Já tinha explorado Mira, noutra altura, pelo que chegou a vez de ir conhecer os Palheiros da Tocha.

Gostei logo do ar tranquilo da povoação, com uma pequena via marginal onde nos podíamos sentar a ver o mar e as suas casas de “pijama às riscas”.

Numa rua paralela à marginal descobri um pequeno restaurante onde almocei e depois é que fui explorar a região. Pareceu-me o local ideal para ficar uma noite, pelo que voltei ao restaurante para perguntar se havia algum alojamento ali perto. Disseram-me que eles próprios tinham no primeiro andar alguns quartos para alugar, pelo que já nem procurei mais. Fui ao carro buscar a mala que deixei no quarto. Guardei a chave e perguntei como é que fazia à noite, quando me viesse deitar, uma vez que pensava ainda dar uma volta a seguir ao jantar. Disseram-me que não havia problema, havia sempre alguém a pé e bastava bater à porta da rua se esta já estivesse fechada.


Depois de uma tarde agradável à beira-mar decidi espreitar uma tasquinha que me tinha despertado a curiosidade. Chamava-se “A Cova do Finfas” e ficava numa cave com um aspeto bastante primitivo mas de onde vinha um delicioso cheiro a comida.

A Cova do Finfas estava cheia, quando decidi ir jantar, mas apareceu logo a proprietária, despachadíssima, que enxotou alguns clientes para outra mesa e conseguiu um espaço para mim. Mal me tinha sentado já estava a perguntar-me o que queria para o jantar. Pedi-lhe a lista que me mostrou com ar surpreendido. Percebi que toda aquela clientela era já habitué, sabendo exatamente o que podia pedir.


A comida apareceu logo de seguida. Enquanto comia tive ocasião de constatar que a maior parte dos clientes eram homens, embora houvesse alguns casais. A proprietária, que fiquei a saber era conhecida pela Gata, demorava-se nas mesas onde só havia homens e contava-lhes daquelas anedotas que eu tinha aprendido que não se contam à frente de senhoras. As gargalhadas atroavam a pequena sala e toda a gente parecia querer que ela também fosse à sua mesa.


A comida estava deliciosa e eu estava com fome, pelo que limpei a travessa. A Gata apareceu-me logo com outra travessa e disse-me “Já vi que gostou, coma lá mais um bocadinho”.

No final pedi a conta e aí esperava-me mais uma surpresa. A Gata não recorria à ementa para fazer as contas. Num pedaço de papel rasgado ia dizendo o que eu tinha comido e escrevia o valor no papel, mas o valor que escrevia não correspondia exatamente ao que eu tinha visto na ementa. Normalmente era inferior. E ia dizendo, “a sobremesa fica só assim; não bebeu o vinho todo, paga só X”, e por aí fora. Resultado, paguei uma quantia incrivelmente baixa por um jantar de abade.


Tinha visto anunciada uma feira na Tocha, povoação eu ficava alguns quilómetros para o interior, e decidi ir até lá, para espairecer um bocado. Na feira encontrei um grupo de jovens de estrangeiros a que me juntei e com quem passei um bocado agradável, até decidir que era altura de regressar ao meu alojamento.


Não havia movimento absolutamente nenhum nas ruas, todas as luzes apagadas e as portas fechadas. Como as casas eram muito parecidas fiquei até um pouco na dúvida sobre qual teria sido a do restaurante onde tinha almoçado, mas por determinado pormenor lá descobri qual era.

Não havia campainha, pelo que bati à porta. Esperei um bocado e nada. Voltei a bater. Tentei várias vezes mas como não ouvisse qualquer movimento nem visse qualquer luz no interior passei a bater com mais força. Bati, gritei, a ponto de nalgumas janelas vizinhas se acenderem luzes, mas não apareceu ninguém.


Comecei a ficar preocupado. Só tinha comigo a carteira com os documentos. A mala com a roupa e todos os meus pertences estava lá dentro. “Bom, pensei, será que vou ter que dormir dentro do carro?”.

A ideia não me seduzia e começava a ficar irritado. Decidi que havia de entrar, desse lá por onde desse. Dei a volta até à rua paralela que ficava por trás, para ver se havia algum acesso por aquele lado.


Nas traseiras de “pensão” havia uma varanda que devia corresponder à cozinha, mas ficava afastada da rua e sem forma aparente de lá poder chegar. No terreno ao lado deviam estar a começar a fazer uma casa. Era um lote escavado e no fundo só se viam pedras e tábuas de madeira com grandes pregos salientes.


Descobri a forma de chegar à dita varanda, mas confesso que hesitei bastante antes de decidir arriscar. Trepei para o muro desse terreno vazio que do lado da rua não ficava muito alto. O problema era que depois tinha que percorrer todo esse muro, cuja largura não devia ultrapassar uns vinte centímetros, e que do lado de dentro ficava a uns três metros do tal monte de entulho, pedras e pregos.


Consegui percorrer o muro todo até chegar ao ponto em que dava acesso ao muro das traseiras da dita pensão. Aí foram só mais uns dois metros até chegar a um ponto onde, saltando conseguia agarrar os varões de ferro verticais da varanda pretendida. Saltei e consegui içar-me para dentro da varanda. Respirei fundo. Tinha acabado de fazer algo que, se me tivessem descrito, teria dito que nem que me dourassem seria capaz de arriscar.


E aqui, finalmente, surgiu a primeira e única facilidade. A porta da cozinha que dava para o terraço não estava fechada pelo que consegui entrar, subir umas escadas e dar com o meu quarto.

Durante toda esta aventura não surgiu ninguém. Houve até uma altura, quando eu fazia o meu número de funambulo em cima do muro, que cheguei a pensar o que diria se tivesse aparecido alguém a perguntar-me o que andava a fazer aquela hora.


Na manhã seguinte desci para tomar o pequeno-almoço, com o ar mais natural deste mundo. Só pensava que aquela gente ia ficar surpreendida por me ver a descer do quarto, pois tinha a certeza de que estavam conscientes de que eu não tinha entrado na noite anterior. Olharam de facto para mim, mas como ninguém disse nada eu também não fiz qualquer comentário. Comi, paguei e parti.

Mas nunca poderei esquecer o episódio, pois deve ter sido uma das alturas da minha vida em que enfrentei o risco de sofrer uma queda que poderia ter tido consequências trágicas.

Uns anos mais tarde fui mostrar a pessoa amiga o local onde se tinha desenrolado o quase drama, mas entretanto já tinham construído mais casas pelo que já não estava igual.

Mas ainda fomos jantar á Cova do Finfas. O restaurante tinha-se entretanto tornado conhecido pelo que tinham ocorrido duas mudanças totais. Em vez da tasca na cova funda havia agora, noutro local, um amplo restaurante, bem arranjado, que não tinha qualquer semelhança com o seu percursor. Perguntei pela Gata e uma rapariga que nos atendia disse “É a minha mãe, mas não está cá hoje.


Os tempos mudam, mas as memórias ficam.


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