O Baú das Memórias continua a ser fértil em descobertas. Desta vez foi uma carta que escrevi à minha tia que me veio recordar um episódio menos feliz da minha vida. Mesmo assim vou relatá-lo pois mostra como é que se consegue dar a volta a um episódio menos feliz pela forma como o encaramos e transmitimos aos outros.
A carta é de Maio de 1958, portanto eu tinha 17 anos. Aqui vai a transcrição da parte que interessa:
“Acho que ainda não lhe disseram que o seu sobrinho foi vítima de uma aventura salvo erro inédita nos anais da família.
Tratou-se nada mais nada menos que de um assalto à mão armada (a arma foi uma pedra, felizmente e apesar de tudo) que foi levado a cabo por indivíduo ou indivíduos de identidade desconhecida quando o queixoso passava por um atalho que fica entre a Praça de Touros de Algés e a Avenida Alto do Duque, numas terras do Parque de Monsanto. Foi assim, mais ou menos, que o relatório da polícia foi redigido.
O caso é que eu vinha à noite de uma explicação com a pasta e o casaco debaixo do braço (fazia muito calor) e meti, como de costume, por aquele atalho que à noite é escuro e deserto.
Quando passei por uns arbustos atiraram-me com areia ou terra, não sei bem, à cara e logo a seguir com uma pedra enorme que me fez cair. Quando me levantei vi um sujeito a fugir ao longe com a pasta e o casaco. Ainda tentei ir atrás dele, mas como estava a perder muito sangue tive que desistir.
Fui até à rua e encontrei um polícia com quem fui ao posto fazer um tratamento e à esquadra apresentar queixa. Mal sabia o que fazia ao apresentar a queixa, porque agora têm-me maçado tanto com perguntas que já desisti dela.
O rescaldo da aventura cifrou-se em um nariz partido (julguei que ia ficar com nariz de boxeur, mas os ossos já estão a unir outra vez), um dente partido, além da cara toda inchada.
Fiquei com uma penca que até metia medo. Agora já estou quase bom e pronto para outra. Lagarto, lagarto.”
E aqui termina essa parte da carta. Agora vou relatar o resto.
Quando saí da esquadra fui ainda a pé até casa, mas acompanhado pelo polícia que deveria querer ter a certeza de que não me ia acontecer mais nada. Felizmente os meus pais já estavam deitados, pelo que pude esgueirar-me para o quarto sem que ninguém me visse.
O problema foi na manhã seguinte. Quando fui à casa de banho e vi a minha cara ao espelho ia morrendo. Não era só o nariz que tinha quadruplicado de tamanho, era a cara toda amassada e azul e negra. Um espetáculo pouco agradável!
Voltei para o quarto e deixei-me ficar por lá. O meu pai ia sair e, com um bocado de sorte, talvez a minha mãe também tivesse que ir a algum lado. Tentava atrasar o máximo possível o momento em que me iam ver naquele estado.
Claro que a minha mãe estranhou eu não ter tomado o pequeno almoço e acabei por ter que sair do quarto e mostrar ao mundo o aspeto pavoroso com que estava. Claro que foi a aflição, as perguntas, enfim, o normal de qualquer mãe que visse o filho assim. Por fim lá consegui convencê-la de que estava muito melhor do que parecia.
Bom, mas tinha que ir para o liceu. Decidi então tirara partido do que me tinha acontecido. Não iam andar de volta de mim, cheios de pena, isso não! Ia arranjar maneira de transformar-me de coitadinho em herói!
Metade da minha cara estava ligada, pois era preciso segurar as talas que me tinham colocado no nariz. Coloquei óculos escuros e enfiei um gorro na cabeça. Uma camisola de gola alta e luvas, e não se via um centímetro da minha pele. E foi nessa figura que fiz a minha entrada triunfal no Pedro Nunes!
Claro que fui logo rodeado por colegas, alguns reconheceram-me pela roupa, outros devido ao meu aspeto estranhíssimo. A todos contei o que se tinha passado, mas dando um toque de heroísmo ao relato, o que estava longe de corresponder à verdade.
Entretanto alguns colegas avisaram-me que o reitor já tinha estado a perguntar aos contínuos quem era aquela criatura estranha que andava por ali. Era melhor eu tirar todos os adereços desnecessários.
E foi assim que consegui transformar um acontecimento desagradável num acto quase heroico da minha parte e granjear a admiração dos meus colegas.
Ah, é verdade, e ganhei uma alcunha: O Homem Invisível.
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