Há já muitos anos detetei que por vezes tinha dificuldade em recordar vários rostos. Havia pessoas de cujas caras me recordava facilmente e outras que confundia facilmente com outras pessoas, mesmo sem serem muito parecidas.
Em jovem isso não me afetou nem preocupou grandemente, com a exceção da vez que não reconheci a rapariga a quem tinha pedido namoro poucos dias antes!
Entretanto, essa incapacidade foi-se acentuando até que tive que reconhecer que tinha um problema e que esse problema podia afetar a minha atividade profissional e a minha vida social.
Estando a minha atividade profissional ligada aos contactos permanentes com os jovens e seus pais, comecei a dar-me conta de que organizava frequentemente atividades em que eles estavam presentes e não lhes reconhecia a cara. Conseguia lembrar-me perfeitamente do nome, da atividade que desempenhavam e até de pormenores que me tinham relatado sobre a sua vida, mas não conseguia colocar uma cara nessa memória.
Não tive outro remédio senão recorrer a estratagemas para me defender e evitar causar má impressão nos outros. O meu staff tinha instruções rigorosas para nunca deixar qualquer cliente falar comigo sem lhe perguntar primeiro o nome. Assim evitavam que lhes perguntasse se o filho estava a gostar do programa quando eles tinham uma filha.
Na vida social isso afetou-me talvez um pouco mais, porque os contactos eram diretos. Não devem ter sido poucas as vezes que passei por mal-educado ou arrogante, só porque passava pelas pessoas sem as cumprimentar.
Há alguns anos atrás alguém a quem eu falava sobre esta dificuldade me explicou que eu sofria de prosopagnosia. Claro que fui logo pesquisar e passo a transcrever um pequeno trecho da wikipedia.
Prosopagnosia em grego: "prosopon" = "cara", "agnosia" = "incapacidade de reconhecer" (também conhecida como cegueira para feições) era, até muito recentemente, tratada como uma desordem rara da percepção da face, na qual a capacidade de reconhecer os rostos está danificada, embora a de reconhecer objetos pudesse estar relativamente intacta. As pesquisas recentes, porém, sugerem que 1 em cada 50 pessoas (2% da população) sofre da desordem em algum grau, e acredita-se que seja hereditária. Até recentemente a desordem estava associada somente a alguma lesão cerebral ou a doenças neurológicas que afetam áreas específicas do cérebro, embora os casos de prosopagnosia congênita ou desenvolvida estejam sendo relatados com frequência crescente.
A revelação sobre o caráter hereditário da prosopagnosia trouxe-me à memória um facto da minha juventude. Os meus pais tinham uma vida social bastante ativa e davam por vezes festas em casa em que recebiam pessoas que não pertenciam às suas relações habituais mas que “tinham de ser convidadas” em certas ocasiões. Lembro-me perfeitamente de estar à porta de casa com o meu pai e ele, ao ver aproximar-se um casal me dizer baixinho “Quem são estes? Vai depressa chamar a tua mãe”.
Os “prosopagnósicos”, e isso também foi confirmado no que li, recorrem a técnicas e truques para lhes facilitarem a vida. Por exemplo, quando alguém me fixa por um pouco mais de tempo do que seria usual, eu cumprimento. Também acontece em lugares públicos alguém estar a falar para uma pessoa que está atrás de mim e eu sorrir e responder.
Não são poucas as vezes em que alguém no meio da rua de repente vem falar comigo e percebo que me conhece muito bem mas não faço a menor ideia de quem seja. Não imaginam o esforço, as alusões veladas, as perguntas vagas que faço para que a pessoa me dê uma pista que ajude a identifica-la. Às vezes consigo, mas nem sempre.
Certo dia no aeroporto aconteceu um episódio perfeitamente caricato. Alguém junto ao balcão olhou para mim com ar de que estava a tentar lembrar-se de quem eu era. Imediatamente retribui o olhar e começamos a conversar alegremente. Durante a conversa usei os meus estratagemas habituais para localizar a pessoa, mas a certa altura dei-me conta de que ele estava a fazer o mesmo. Ou seja, estivemos imenso tempo a falar como velhos amigos e tenho a certeza de que ele, como eu, se foi embora sem fazer a menor ideia sobre quem era a pessoa com quem tinha estado a falar.
Quando descobri que a minha desordem tinha um nome que ninguém conhecia passei a usa-lo a torto e a direito. Nunca ninguém tinha ouvido a palavra e muita gente me pede para a soletrar. Faço um vistão.
O meu irmão mais velho mora longe, mas por vezes vou visitá-lo. Certa vez a minha cunhada referiu o facto de ele não fixar a cara das pessoas. Deu como exemplo que, quando iam na rua, ela lhe dava um toque no braço para ele cumprimentar alguém que ia a passar. Só que o que acontecia era que por vezes ela dava-lhe um toque para lhe chamar a atenção para uma montra, por exemplo, e o meu irmão imediatamente cumprimentava a pessoa que vinha a cruzar-se com ele na altura.
E descobri mais um elo comum. Ambos gostamos imenso de cinema e certo dia o meu irmão disse que por vezes nos filmes tinha dificuldade em situar a história por que confundia os intérpretes. Ora acontece exatamente o mesmo comigo. É recorrente nos filmes que vejo hoje em dia a certa altura já estar completamente baralhado porque troquei tudo. A mãe afinal é a irmã e a filha é a amante, ou qualquer coisa no género.
Conclusão: pai e dois filhos com o mesmo problema; é hereditária com certeza. Ainda tenho curiosidade de saber se acontece com mais frequência ao sexo masculino, porque todas as minhas referências são sobre homens.
Uma das pessoas que se dedicou mais ao estudo da prosopagnosia, porque tinha o mesmo problema, foi um distinto neurologista chamado Oliver Sacks. Também era escritor e escreveu, entre outros, um livro com o título “The man who mistook his wife for a hat”.
Confesso que considero um exagero, mas pergunto a mim mesmo o que poderá acontecer no dia em que eu chegar a casa e der um beijo ao bengaleiro.
Commentaires