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Foto do escritorantvaladas

O Land Rover na Ópera


O São Carlos

Já vi a Aida com camelos nas Termas de Caracala, em Roma, a Miss Saigon com um helicóptero no palco, em Londres, ou o Cirque du Soleil com uma gigantesca piscina de paredes de vidro em cena grande parte do espetáculo, em Las Vegas.

Mas aposto que ninguém consegue imaginar qual a ópera que justifica a presença de um Landrover.

Eu vou explicar.

Em jovem procurava participar em todos os acontecimentos de caráter social que decorriam em Lisboa. Conhecia muita gente e tinha um grupo de amigos da minha idade que eram como eu. Íamos a todas.



Nessa altura ir à Opera no São Carlos era um acontecimento que mobilizava grande parte da sociedade lisboeta, entre gente do governo, diplomatas e as chamadas famílias conhecidas. No meu grupo de amigos muitos pertenciam a essas famílias, mas tinham um espírito mais aberto e menos convencional do que o resto do agregado familiar.


Ir ao São Carlos obrigava os homens a usar smoking e as senhoras vestido de noite. Não se podia entrar vestido de outra forma. Havia uma exceção. Mesmo no topo do teatro existe um terceiro balcão, que era conhecido como “as torrinhas”. Aí já se podia estar com roupa “normal”, mas os homens sempre de casaco e gravata. Tinha uma entrada própria, e era proibido, nos intervalos, descer ao foyer onde se encontravam os trajes de gala. Não podia haver “misturas”.


As assinaturas para as temporadas eram caras, pelo que eu, e muitos dos meus amigos, tínhamos assinatura para as torrinhas, de preços muito mais acessíveis. Só que alguns de nós, mais desinibidos, tínhamos smoking e era o que vestíamos em noite de espetáculo. Os empregados que controlavam as escadas que desciam das torrinhas para o foyer já nos conheciam e, nos intervalos, deixavam-nos passar.


Normalmente eu descia logo que percebia que ia haver intervalo para não ser apanhado a descer do “galinheiro” pelos restantes espetadores. Naqueles tempos as aparências eram muito importantes e ser frequentador do galinheiro do São Carlos implicaria deixar de ser convidado para uma data de festas a que estava habituado.


O Tamariz

No Verão passava a maior parte do tempo na praia, sendo a do Tamariz e a da Rainha em Cascais as minhas favoritas. Havia ainda muito pouco turismo, isto passava-se no início dos anos sessenta, pelo que a presença de estrangeiros era facilmente detetável.

E foi assim que travei conhecimento com dois americanos. Pouco tempo antes eu passara um ano na América, pelo que não perdia nenhuma oportunidade de falar com gente vinda daquelas bandas.

O mais velho andaria na casa dos quarenta, tinha boa constituição física ar de explorador ou caçador das selvas tropicais. O outro, um pouco mais novo, era bastante magro mas muito tisnado pelo sol e mostrando grande agilidade. Gostaram de falar com um jovem, eu devia estar com vinte, que tinha vivido um ano na América e acabaram por me perguntar se me importava de servir de seu guia numas voltas que tencionavam dar à volta de Lisboa.

E foi então que vi o seu carro! Era um Land Rover que parecia ter saído de um filme. Cheio de pó, com algumas amolgadelas, uma capota de lona e as partes laterais decoradas com bandeiras dos mais variados e pouco conhecidos países africanos, bem como com frases nas línguas desses países, algumas em escrita árabe.

Só entrar para aquele veículo e passar junto aos meus conhecidos, que ficavam a olhar estarrecidos, como dizem os americanos, “made my day”.


A abertura da Temporada de Ópera

E foi então que tive uma daquelas ideias em que quem já começou a ler as minhas histórias sabe que sou fértil. A temporada oficial de Ópera no São Carlos era inaugurada no dia seguinte e lembrei-me de pedir aos meus amigos que me fossem buscar ao teatro à saída do espetáculo. Dei-lhes todas as indicações sobre como chegarem ao local e como integrarem a longa fila de Mercedes que iam buscar as entidades oficiais mais importantes. Nesse dia quase todos os Ministros iriam lá estar.


Devo dizer que durante o espetáculo só pensava: Será que eles entenderam as minhas instruções? Será que vão mesmo aparecer?


Chovia a cântaros quando o espetáculo acabou e praticamente toda a gente ficou à espera que o seu carro e respetivo chauffeur a viesse buscar. Os dois porteiros, com chapéus de chuva enormes, andavam numa roda viva a acompanhar os membros do governo, do Corpo Diplomático e do jet set nacional até à porta dos seus carros, à medida que eles paravam em frente da entrada.



O Land Rover

Eu esperava, ansioso, até que a certa altura me dei conta de algumas exclamações. Olhei para a fila de carros e no meio dos Mercedes pretos oficiais e dos restantes carros, todos de boas marcas, lá vinha o Land Rover que parecia ter acabado de atravessar o deserto de Saará.


Claro que toda a gente olhava quando chegou em frente à porta e parou. Ouvia-se murmurar. Eu podia imaginar o que estariam a dizer e gozava interiormente. O porteiro hesitou, olhou em redor sem saber bem o que fazer e nessa altura eu avancei e disse “É para mim”, com o ar mais digno deste mundo.

O homem, atrapalhado, ia acompanhar-me para me abrir a porta, como já tinha feito com todos os anteriores espetadores. Só que eu tinha ainda mais um trunfo guardado. É que o Land Rover só tinha duas portas à frente e nesses lugares estavam os meus amigos. Eu tinha que entrar pela traseira do carro, onde havia dois bancos corridos laterais. O porteiro, cada vez mais atrapalhado, lá me acompanhou e eu saltei para dentro do veículo agradecendo ao porteiro com o ar mais natural deste mundo.


Claro que pelo canto do olho procurava ver o ar estarrecido e tentava adivinhar os comentários das pessoas, ainda acumuladas à porta do São Carlos, à espera do seu transporte. Mas tínhamos que avançar, não podíamos ficar a bloquear a saída.

Quando saímos dali foi uma gargalhada pegada. Os americanos, mais habituados às selvas e savanas que aos espetáculos de ópera, faziam-me toda a espécie de perguntas sobre as pessoas que estavam presentes. Queriam também saber se tinham feito como eu lhes tinha indicado. Tinham sido perfeitos. Aliás, da parte deles, bastava aparecerem. O efeito era garantido.


No dia seguinte os meus amigos partiram e, confesso, nunca mais os vi ou soube deles. Mas nunca os esqueci. Tinham-me ajudado a criar a noite mais memorável da temporada de Ópera do Teatro Nacional de São Carlos.


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1 Comment


noya.isabel753
Jan 03, 2021

Cara de quem não parte um prato e derruba a prateleira!

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