Em 1972 o Presidente da CML decidiu organizar uma cerimónia diferente, integrada nas Festas da Cidade. Era habitual haver touradas à antiga portuguesa, normalmente integradas numa homenagem a determinada entidade, mas o projeto do senhor era muito mais ambicioso:
Ele pretendia fazer uma reconstituição do que acontecia no passado, com os touros a serem trazidos pelos campinos até um local na zona do Lumiar de onde, no dia da corrida, eram trazidos pelos campinos e as inevitáveis chocas pelos campos até à praça de touros praça onde ia decorrer a tourada.
Só que nesses tempos, o trajeto era feito por terras, quintas e azinhagas enquanto que em 1972 já havia avenidas, automóveis e a atividade normal de uma cidade entre a Calçada de Carriche e a Praça de Touros do Campo Pequeno. E parece que ninguém pensou nisso.
Ninguém, não é bem assim. Quando tive conhecimento do que estava nos planos da edilidade calculei que o projeto tinha todos os ingredientes para correr mal. Falei com um grupo de amigos que moravam junto ao Campo Grande e combinámos ir todos nessa noite até lá para aguardar os acontecimentos.
E, claro, tudo aconteceu como eu tinha previsto, mas em muito pior!
Tudo correu bem até ao início do Campo Grande. Aí, por negligência ou distração, uma choca abriu um espaço por onde se escapuliu um touro. Imediatamente um campino foi atrás do touro, deixando a sua zona mais desprotegida.
Resultado, chocas a abrirem mais espaços daquele lado e mais touros a fugirem. Em breve havia touros a correr pelas ruas e avenidas da capital. E os campinos, de cabeça perdida, atrás deles.
Eu e o meu grupo de amigos estávamos perto do Monumento aos Heróis da Guerra Peninsular quando nos apercebemos do burburinho e logo fomos informados do que estava a acontecer. Pelos vistos, na nossa direção já vinham alguns touros.
E eles apareceram, de entre as árvores do Campo Grande. A turba, na sua maioria jovens do sexo masculino, fez um alarido que levou um touro a fugir. Só que depois surgiram mais, vindos de vários lados. Os touros fugiam uns metros mas depois paravam, voltavam-se e investiam. Aí era ver aquela gente toda a fugir espavorida. No dia seguinte havia bancos partidos, arbustos espezinhados e alguns carros com amolgadelas.
Diga-se em abono da verdade que os danos foram, na maior parte dos casos, causados pelos humanos, não pelos touros.
Logo ao início da Avenida das Forças Armadas havia um local onde camionetas de caixa aberta tinham fruta e vegetais que seriam distribuídos no dia seguinte pelos mercados de Lisboa. Dois touros fugiram para aí, com o pessoal logo atrás.
Ao descobrirem que havia fruta à descrição foi o assalto às camionetas. Não deve ter faltado fruta a muitas famílias portuguesas naquela semana.
De repente começaram a gritar que um touro tinha entrado na Feira Popular, que ficava mesmo ali. Decidi ir lá espreitar, imaginando o pandemónio que por lá iria.
Não vi nenhum touro e decidi voltar atrás e procurar os meus amigos. Pareceu-me que estavam do outro lado da Avenida da República e atravessei a avenida a correr olhando a ver se eram eles.
Alguém gritou e apontou para a minha frente. Eu ia a correr direito a um touro que vinha a atravessar a avenida na minha direção. Não havia alternativa, fugir era pior. O touro estacou, talvez admirado por me ver a ir direito a ele. Contornei-o e continuei a correr para o outro lado, sem que o touro tivesse investido.
Não foi bravura, foi loucura, sorte ou o que lhe quiserem chamar.
No dia seguinte é que soube da magnitude do acontecimento. Os touros tinham-se espalhado pela cidade. Havia touros no Lumiar mas até na avenida que dá acesso ao aeroporto.
Os meus pais contaram-me que tinham ido ao cinema, ao Apolo 70, e à saída tinham visto uma data de gente a correr e a gritar que andavam touros na avenida. O meu pai terá comentado “As coisas que esta gente inventa!”
Soube-se também que uma senhora que conduzia um Mini na Avenida Calouste Gulbenkian terá ficado tão assustada quando viu um touro que teve um acidente e faleceu.
No dia seguinte no Diário de Notícias uma nota da Presidência da Câmara referia o episódio da noite anterior, mas acrescentava que os lisboetas deviam andar com os devidos cuidados quando saiam à rua á noite!!!
Ainda escrevi uma nota, que acabei por não enviar porque não adiantava, em que dizia qualquer coisa como “Claro, os lisboetas quando saem à noite devem ir preparados para ser atacados por leões, manadas de búfalos, elefantes, etc…”
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