Estávamos no final dos anos cinquenta. Ia terminar o secundário e, por contar dispensar dos exames de admissão à faculdade, ia ter umas longas férias de Verão. Decidi então que iria visitar todos os meus amigos europeus que eu conhecera quando estivera, dois anos antes, como estudante de intercâmbio nos Estados Unidos.
Com a lista dos nomes e moradas, elaborei um plano de visitas procurando visitar tantos quantos fosse possível. Não tinha dinheiro e recusava-me a pedir dinheiro ao meu pai (tinha regressado da América com a noção de que os jovens, quando pretendem qualquer coisa, devem trabalhar para a obter).
Mais uma vez, tive que informar os meus pais sobre o que tencionava fazer.
À boleia? - perguntou o meu pai, - mas eu nunca te vi andar à boleia na vida.
- É muito fácil - respondi, - ponho uma mochila às costas, vou para a estrada, espeto o dedo e os carros param.
Para mim, naquela idade, não havia dificuldades. Aliás, tinha estado um ano longe de casa, pelo que um ou dois meses pelas estradas da Europa não me faziam confusão.
- Pois é - disse o meu pai, - mas na América tinhas uma casa, uma família. Agora nem sabes onde vais ficar. Além disso, não acredito nada nessa coisa da boleia.
- Vou até à Noruega e volto, pai.
- Pois, pois, quando chegares ao Entroncamento, telefona-me para eu te ir buscar.
E a conversa ficou por aí.
Uma vez elaborado o plano de viagem, procurei entre os meus amigos alguém que me parecesse suficientemente desenrascado para poder ser meu companheiro de viagem. Fui até ao café onde reuníamos habitualmente e lancei o desafio:
- Vou dar uma volta à Europa à boleia. Quem é que quer vir comigo?
O Rui veio ter comigo e pediu que explicasse melhor a ideia. Disse-lhe qual era o meu plano e quais os países que pretendia visitar. Expliquei também que o percurso tinha sido pensado com o intuito de encontrar o maior número possível de amigos que tinham estado comigo nos Estados Unidos.
Nalguns casos, até era possível que me convidassem para ficar em suas casas e eu não podia aparecer com um “pendura”. Sugeri que encontrasse pen pals nos locais onde eu tencionava parar. Acrescentei que a viagem seria feita à boleia e que, de uma maneira geral, iríamos parar em locais onde houvesse uma Pousada da Juventude. Perguntei-lhe se conseguia fundos para a viagem e recomendei que fosse tirar o cartão internacional de alberguista. Naquela altura, chamavam-se Albergues da Juventude.
Faltava resolver uma parte importante: embora eu tivesse decidido que a viagem se faria à boleia e que iriamos dormir em pousadas de juventude, mesmo assim iria ter encargos ao longo da viagem. Como tinha declarado aos meus pais que a viagem seria toda paga por mim, tinha que arranjar fundos para a poder concretizar.
O acaso ajudou. Estava na embaixada dos Estados Unidos a tratar de qualquer assunto relacionado com o ano em que tinha lá estado a estudar, quando ouvi uma conversa em que se queixavam que o professor que dava aulas de Português aos marines que faziam o serviço de segurança da embaixada se tinha ido embora e estavam sem ninguém.
Com a enorme “lata” dos meus 18 anos, meti-me na conversa e disse que estava perfeitamente apto a dar as aulas que eles pretendiam. Um pouco desconfiados, decidiram pôr-me à prova. A coisa resultou. Os marines, que eram pouco mais velhos que eu, acharam imensa graça a terem-me como professor e colaboraram bastante, de modo que tudo correu sobre rodas.
Diverti-me bastante a dar aquelas aulas. Havia uma moradia no Restelo onde os marines residiam e estavam sempre a organizar aquelas festas a que me tinha habituado nos Estados Unidos e para as quais me convidavam sempre. E no fim do mês lá vinha o dinheiro que ia juntando religiosamente.
Entretanto, da embaixada da África do Sul contactaram com a embaixada americana a perguntar se podiam recomendar um professor de Português para o seu adido de imprensa. E lá foi o António Valadas.
Aqui a situação era muito diferente. O adido era um senhor na casa dos sessenta que me mirou de alto a baixo e perguntou:
- So you think you can teach me Portuguese? - num tom pouco amistoso.
Mais uma vez, a minha lata ajudou. Na semana seguinte, estava a dar aulas num ambiente muito formal, o oposto do ambiente que tinham as minhas aulas com os marines.
Quando eu chegava, ele estava normalmente a ler os jornais portugueses. Pedia-me para lhe explicar certos termos e corrigir a pronúncia. A meio da lição era o teatime. Entrava a secretária com duas chávenas de chá e uns bolinhos, tudo muito requintado e completamente diferente do ambiente das lições com os marines. A seguir, vinha a parte da gramática e para essa eram muito úteis os manuais que eu tinha conseguido na embaixada americana.
Em suma, foi graças a estas aulas que consegui recolher os fundos suficientes para me lançar na viagem que tinha idealizado. Agora só faltava partir.
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